Liturgia e Sacramento
Duas Faces da Mesma Missão da Igreja
Miguel Uchoa*
- Introdução: A
forma e o mistério
Certa vez uma pessoa me abordou na igreja e fez a seguinte pergunta: “Bispo, por que nossos cultos não são mais sacramentais?” Respondi inicialmente perguntando: “O que você de fato quer dizer com ‘mais sacramentais?” e ele com sinceridade disse: “uma celebração usando mais a liturgia” percebi que se eu continuasse perguntando, ele continuaria se colocando equivocadamente e aquela conversa não teria um fim proveitoso pois seguiria com interrogações, por isso adiantei: será que você não está se referindo a uma celebração mais formal, usando mais os formulários litúrgicos, as vestes etc.? ele rapidamente afirmou: sim, é isso mesmo que quero dizer! Havia uma confusão na mente daquele rapaz; ele confundia liturgia com sacramento, o que é muito comum.
A Igreja sempre reconheceu que o culto cristão é o centro da vida e da missão. É no culto que a comunidade se reúne não apenas para recordar, mas para viver e experimentar a presença real do Cristo ressuscitado, tornando-se participante ativa de Sua graça e de Sua obra redentora. O culto é, assim, o ponto de encontro entre o divino e o humano, onde a fé da Igreja se manifesta de forma concreta e visível.
No entanto, ao longo da história, tornou-se comum confundir “liturgia” com simples “ritualismo”, ou seja, enxergar a ordem e a forma do culto apenas como práticas exteriores, desprovidas de significado profundo. Da mesma forma, “sacramento” muitas vezes foi reduzido a uma “cerimônia”, como se fosse apenas um ato simbólico, separado da ação efetiva da graça de Deus. Essas reduções empobrecem a experiência cristã, pois tiram do culto seu caráter de encontro vivo com o mistério de Deus e de participação efetiva na missão da Igreja.
Para o bem da missão cristã, é fundamental esclarecer essa confusão: a liturgia, quando autêntica, é expressão da fé celebrada, e os sacramentos são sinais visíveis da graça invisível. Integrar liturgia e sacramento significa unir forma e mistério, ordem e presença, tornando o culto um espaço de transformação, onde a comunidade é fortalecida para viver e testemunhar o Evangelho no mundo.
“A liturgia é a fé celebrada; os sacramentos são a graça experimentada.”
Gregory Dix, The Shape of the Liturgy (1945)
“Deus é espírito, e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade.” (João 4:24)
O que é um Culto Litúrgico
O termo liturgia (do grego leitourgia) significa “obra do povo”. No contexto cristão primitivo, designava a ação comunitária de adoração, como descrita em Atos 2:42,“E perseveravam na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações.”
“A liturgia é o serviço do povo de Deus ao seu Senhor, em resposta à Sua Palavra e às Suas obras.”
John Stott, The Contemporary Christian (1992)
O culto litúrgico é, portanto, a adoração ordenada pela Igreja. Ele pode ocorrer com ou sem celebração sacramental, mas sempre mantém a forma, a reverência e a coerência com a fé apostólica, e é que segue uma estrutura histórica e teológica de oração, com base nas Escrituras e na tradição apostólica e reflete o entendimento de que a adoração é uma obra do corpo de Cristo, não apenas de um indivíduo.
A Liturgia contempla os aspectos que facilitam o nosso “serviço” a Deus como” Adoração – Confissão – Intercessões – Leitura da Palavra de Deus – Exposição da Palavra (Homilia) – Eucaristia (quando houver). Esses elementos, realizados em diferentes formas e estilos, compõem a liturgia, o serviço que prestamos a Deus. Não há culto que não seja litúrgico, mas há liturgias mais ou menos elaboradas, mais ou menos históricas, mais ou menos contemporâneas.
“A liturgia não é apenas palavras ditas, mas a vida da Igreja em oração, conduzida pelo Espírito Santo.”
Livro de Oração Comum, Prefácio da Eucaristia
O Livro de Oração Comum é a expressão clássica desse princípio: um modelo de adoração que envolve toda a comunidade, com orações, leituras bíblicas, confissão, absolvição e bênção.
Exemplo:
- Ofício Matutino e Vespertino
- Liturgia Eucarística
- Celebrações de Batismo, Matrimônio e Confirmação
Um culto pode ser litúrgico mesmo sem celebrar um sacramento, por exemplo, um Ofício de Ação de Graças ou um culto matutino dominical. Para combater o liturgismo e o engessamento” das celebrações o “gênio” Thomas Cranmer incluiu um artigo (34º) nos 39 artigos de religião, ponderando o bom senso e apelo à diversidade
- O que é um Culto Sacramental
O culto sacramental é aquele em que há mediação visível da graça, por meio de sinais instituídos por Cristo. Os sacramentos são atos de Deus que utilizam elementos criados para comunicar Sua presença redentora.
“O sacramento é um sinal visível de uma graça invisível, instituído para nos santificar.”, Santo Agostinho, Sermão 272
“Cristo está presente, não apenas espiritualmente, mas também de modo eficaz, em cada ato sacramental.”
,John Calvin, Institutes of the Christian Religion, IV.14
O culto sacramental tem Cristo no centro, agindo pela Palavra e pelos sinais — água, pão, vinho, óleo — para alimentar, purificar e enviar o seu povo.
“Este é o meu corpo… este é o meu sangue… fazei isto em memória de mim.” (Lc 22:19–20)
O culto sacramental é aquele que tem como centros teológicos e espirituais a celebração dos sacramentos instituídos por Cristo, especialmente o Batismo e a Santa Ceia.
Nele, a ênfase está na mediação visível da graça invisível.
Segundo Santo Agostinho, “O sacramento é um sinal visível de uma graça invisível.” Nessa perspectiva, o culto sacramental não é apenas um ato simbólico, mas uma encarnação da graça, um meio pelo qual o Espírito Santo comunica a presença de Cristo ao seu povo.
Assim, o culto sacramental é o espaço da presença eficaz de Cristo, não por mágica, mas pela fé e pela promessa da Palavra.
Por que dizem “esse culto é mais sacramental”?
Essa expressão geralmente aparece quando há:
- Maior presença simbólica (cruz, altar, vestes, incenso);
- Ênfase na Eucaristia como ápice da adoração;
- Valorização dos gestos litúrgicos (ajoelhar, curvar-se, reverência).
Mas isso não significa que seja “mais espiritual” ou “mais santo”. Significa apenas que há mais evidência sacramental da fé, ou seja, o culto expressa visivelmente o mistério da graça.
- Distinções Essenciais
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Aspecto |
Culto Litúrgico |
Culto Sacramental |
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Origem |
Prática apostólica e tradição da Igreja |
Instituição direta de Cristo |
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Ênfase |
Ordem e forma da adoração |
Mediação da graça |
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Elemento central |
Estrutura de oração e louvor |
Os sacramentos (Batismo e Eucaristia) |
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Exemplo |
Ofício Divino, Orações Diárias |
Santa Ceia, Batismo |
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Efeito espiritual |
Comunhão e formação da fé |
Renovação e nutrição da graça |
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Risco |
Formalismo |
Sacramentalismo |
Referências:
- Cranmer, Thomas. Livro de Oração Comum 1552
- Hooker, Richard. As Leis da Política Eclesiásticas, Livro V.
- J. I. Packer. “The Gospel in the Liturgy,” em A Quest for Godliness (1990).
- Liturgia ≠ Sacramentalismo
O sacramentalismo surge quando se atribui poder mágico ao rito, esquecendo-se de que Cristo é o agente da graça.
“Não é o rito que salva, mas a fé que recebe o Cristo que o rito anuncia.” Martinho Lutero, Catecismo Maior, sobre o Batismo.
A verdadeira liturgia é a forma encarnada da fé. Ela não substitui a presença de Deus, mas a expressa. Um culto pode ser litúrgico e vazio se faltar fé, ou simples e poderoso se o Espírito agir. Da mesma forma, pode conter um sacramento e tornar-se sem sentido se aquele sacramento não for compreendido e acatado como missão. Nunca podemos esquecer que o sacramento é uma ordenança; há um comando a ser realizado e um propósito a ser cumprido.
“Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.” (Isaías 29:13)
- Por que dizem “esse culto é mais sacramental”?
Essa expressão geralmente se refere a cultos que:
- Valorizam os sinais sensíveis da fé (cruz, altar, incenso, velas);
- Destacam a Eucaristia como ápice da adoração;
- Expressam a sacralidade do tempo e do espaço.
Mas ser “sacramental” não é ser “mais formal”, é viver a presença da graça de Deus mediada por meios visíveis.
“O mundo é o grande sacramento de Deus. Cada ato da Igreja deve revelar o invisível através do visível.”,
Alexander Schmemann, For the Life of the World (1973)
- Aplicação Pastoral e Missionária
Os ministros(as) devem ensinar que:
- A Liturgia é a expressão ordenada da fé.
- O sacramento é o encontro eficaz com a graça;
- A missão da Igreja é tornar o mundo sacramental, isto é, tornar a graça visível em tudo o que faz.
“Tudo seja feito com decência e ordem.” (1 Coríntios 14:40)
“Ide, portanto, e fazei discípulos, batizando-os…” (Mateus 28:19)
“A Igreja não é apenas um povo com uma missão, mas um povo que é missão, um sacramento vivo da presença de Cristo no mundo.” John Zizioulas, Being as Communion (1985)
- Conclusão
Liturgia e sacramento caminham juntos como forma e substância da adoração cristã. A liturgia ordena; o sacramento vivifica. A forma sem vida é ritualismo; a vida sem forma é confusão. Mas a forma cheia de vida é adoração em espírito e em verdade. são duas faces de uma mesma moeda: a missão sacramental da Igreja no mundo. A Igreja é litúrgica porque adora com ordem; é sacramental porque é sinal e instrumento da graça de Deus no mundo. Separar as duas dimensões empobrece a fé; integrá-las faz o corpo de Cristo brilhar com toda a sua beleza e poder.
Que cada culto seja uma celebração ordenada e viva, onde a forma exprima o mistério e o mistério santifique a forma
“Na liturgia, o céu toca a terra.”
John Chrysostom, Homilias sobre Isaías
Referências
- Agostinho de Hipona. Sermones 272–275.
- Thomas Cranmer. The Book of Common Prayer, 1552.
- Richard Hooker. Laws of Ecclesiastical Polity, Livro V.
- John Calvin. Institutes of the Christian Religion, IV.14–17.
- Dom Gregory Dix. The Shape of the Liturgy. London: Dacre Press, 1945.
- Alexander Schmemann. For the Life of the World. St. Vladimir’s Seminary Press, 1973.
- John Zizioulas. Being as Communion. St. Vladimir’s Seminary Press, 1985.
- J. I. Packer. A Quest for Godliness. Crossway, 1990.
- John Stott. The Contemporary Christian. IVP, 1992.
- Martinho Lutero. Catecismo Maior, seção sobre o Batismo e a Ceia.